quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Sobre Improviso, Medo e Liberdade

          Como sapateador, sempre gostei de improvisar. Sempre me pareceu um momento de profundo contato comigo mesmo, uma oportunidade de expressar, de forma muito vital e direta... o que quer que eu precisasse expressar! Encantou-me também, desde cedo, a sensação de estar jogando, o imprevisto característico da improvisação, que dá a cada novo “lance” o seu frescor, seu caráter, que é sempre, e a cada vez, criador e renovador.
          Com tudo isso, estou dizendo que, para mim, a experiência de sapatear improvisando constitui uma vivência única, válida per se, por tudo o que me proporciona em termos de sensações, sentimentos, pela energia que movimenta em mim (cada um entenda como quiser o que significa a palavra energia!). Repare que não estou afirmando que a improvisação é, necessariamente, e em todos os casos, algo que vá agradar ao público, ou mesmo que deva ser submetido a um público. Sabemos que muitos dos grandes mestres fazem do improviso seu meio de performance por excelência mas, nesses casos, existe um longo processo de depuração da linguagem, bem como o desenvolvimento de técnicas que tornam o improviso “legível” para o público. No entanto, gostaria de falar um pouco neste texto sobre o caráter vivencial da improvisação, naquilo que ela pode trazer de bom para a alma, em um momento anterior a este tratamento que visa o palco.
          Como professor, intuitivamente inclinei-me a priorizar exercícios que provocassem a construção dos conhecimentos relacionados à improvisação de uma forma que fosse viva, expressiva e visceral para o aluno, sem uma preocupação imediata de dar acabamento estético ao que é realizado nesses exercícios. Isso porque, para mim (muitos negritos e sublinhados nesse “para mim”) a grande prioridade é que o aluno acesse seu próprio corpo e subjetividade para que possa expressar algo vivo. Uma poda prematura (Erraste o acento! Este braço está feio! Isto está muito simples... cadê os pullbacks?) tenderá a afastar o aluno de fazer suas próprias descobertas e correr o mais rápido possível em direção à imitação do molde – no caso eu, ou outro professor que considere como um modelo. Neste processo, perde-se o conteúdo interior do movimento, sua energia. Desejo fazer o certo, não o que sinto necessidade de fazer. Perde-se também com isso, na minha opinião, a própria razão de ser de improvisar.
          Pois bueno... a considerar os 15 anos em que sou professor de sapateado, é de se admirar com que lentidão comecei a me dar conta de que esta distinção entre o “lado de dentro” (vivência) e o “lado de fora” (forma) da improvisação não é clara para quase ninguém. Mais ainda: a própria idéia de que se possa fazer qualquer movimento de dança fora de uma intenção prévia de “performar”, meramente pela necessidade e desejo de fazê-lo, parece inocente e tola para metade das pessoas com quem convivi, e um desnecessário risco de expor-se ao ridículo para a outra metade.
          Sem dúvida nenhuma os anos de sala de aula me mostraram que, da maioria das pessoas que convidei a experimentar o caminho da improvisação, obtive uma das duas reações:
1 - Uma timidez beirando o pânico, cheia de desculpas do tipo “não sei”, “não tenho criatividade”, “sou descordenado”, “não gosto”, etc etc etc (perfeitamente compreensível: criar é permitir-se ser, na frente do outro e, muito pior, na frente de si mesmo. Superar o medo dos julgamentos pânico. Quem não sabe disso?).
2 – Um desejo exagerado de auto-superação, um desejo enorme de fazer “muito bem”, segundo qualquer parâmetro externo tomado como válido, seja a velocidade, a dificuldade de execução, ou qualquer outro... o resultado, nesses casos,  é muito esforço e pouca satisfação, já que o improvisador fez tudo para os outros e nada para si. No afã de desempenhar, perdeu o contato consigo mesmo.
          Nos dois casos, o medo do julgamento exterior, ou mesmo o medo da possibilidade de que exista vida fora desse julgamento, gerou uma ansiedade tão grande que imobilizou a uns e robotizou a outros. Não causa admiração que seja assim, se pararmos para pensar. Toda a “metafísica” (tomei aqui liberdades com esta palavra) da vigente forma de pensar rege-se pelo pressuposto de que existimos apenas por fora, apenas nos olhos dos outros. Cada gesto ou escolha deve pautar-se pela necessidade de parecermos brilhantes, bem-sucedidos, bacanas, cool. Cada movimento precisa ser postado e curtido nas redes sociais – o Grande Olhar do Outro. A vivência interior profunda e sensível está grandemente empobrecida em função dos valores da cultura atual. Sensibilizar-se e recuar da maré gritalhona do mundo é fragilizar-se e correr o risco de desaparecer, ou mesmo de – horror! – ser desaprovado por outra pessoa. Se vivemos a partir do olho do outro, ser ignorado não é o mesmo que morrer?
          Isto tudo aparece na sala de aula na forma de uma profunda negação à entrega pessoal, e mesmo de uma sincera convicção de que o único e derradeiro objetivo de qualquer expressão artística é, sim, impressionar o outro. Levei muitos anos para me dar conta (que inocência a minha!) de que este discurso é muito mais forte do que as minhas pretensões epistemológicas (pra usar uma palavra bonita). Mas isso não me desanima. Pelo contrário. Me equipa para entrar na sala de aula e propor com clareza, para que o aluno faça suas próprias escolhas. Se isso reduzir meu número de alunos... bueno, sempre foram tão poucos né, quem não sabe disso?
          Então você partilhará um tablado comigo e, entre um exercício coreografado e um alongamento, eu te farei a chocante proposta: e aí? Que te parece a idéia de partir em aventura maluca, na qual você precisará buscar,  dentro de você mesmo, uma forma de sapatear que tenha a cara da sua alma? Que te parece a idéia de compreender com tal profundidade as amarrar e engrenagens que movem teu corpo dançante que ele se tornará um canal direto, uma ponte entre você e sua essência, com total autonomia crítica em relação às idéias de seu professor?

          Não te prometo um Prêmio Açorianos de melhor bailarino... mas te garanto que, sempre que dançares, com ou sem público, teu interior vai ter oportunidade de se manifestar plenamente... para mim, esta é a definição de liberdade

5 comentários:

  1. Aí eu segui viajando na maionese e pensei o seguinte, de forma bem "cuspida", por assim dizer:
    A diferença entre improvisar e ser coreografado por outra pessoa é , simplesmente, que você assume a responsabilidade de tomar as decisões. Vai ficar ruim ou bom? Eis o medo.
    A diferença entre improvisar e coreografar para si mesmo é que, no improviso, interior e exterior se conectam EM TEMPO REAL – e tanto mais profunda será essa conexão quanto mais amplo for o vocabulário do improvisador. Já na coreografia existe um tempo de distanciamento no qual aquilo que é feito pode ser ponderado e refeito, o que permite um refinamento, um aprofundamento, uma reflexão sobre que, talvez, te leve além do que era possível expressar até então...

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  2. Tu pediste para eu me manifestar, aí, já viu, né? Ficou outra tese...
    Sobre a Arte e a Arte de Improvisar
    A respeito dos aspectos que levantaste na tua análise sobre a reação dos alunos enquanto improvisadores de sapateado. Acho que, em parte, “Freud explica”! Quero dizer, com isso, que grande parte do digamos “desconforto” de improvisar na frente de outras pessoas, está ligado à imagem da manifestação artística (neste caso, dança) que recebemos, quando crianças, como um pacote. Explico: Os pais colocam os filhos em aulas de dança, instrumento musical, ou seja lá o que for, e, no final do ano, querem ver uma apresentação, certo? Querem ver o que os filhos “aprenderam” e para isso, os filhos ensaiam... Assim, a manifestação artística está focada no seu fim (a apresentação de final de ano) e não no meio (no processo). Aprendemos que devemos mostrar aos outros, o resultado final do produto (artístico). Por isso, improvisar na aula se torna difícil para a maioria das pessoas.
    Bem, claro que numa questão complexa, a resposta não é simples e muito menos só uma. Há outros fatores e aí talvez eu me encaixe no grupo 2 (do desejo exagerado de autosuperação) (sou virginiana, vou fazer o que?). Mas aí entrar alguns freios inibitórios desencadeados pelo próprio professor, que podem dificultar o “livre improviso”. Quando fazia biologia, havia um professor meu, muito exigente em relação ao uso dos termos corretos em sua disciplina, que nos corrigia constantemente, quando usávamos algum termo não técnico: “Hei de lapidar vosso vocabulário”, dizia ele. Um dia eu respondi: “Ou o senhor nos lapida, ou ou senhor nos emudece!” Isso porque, vários alunos, aqueles mais tímidos, já nem ousavam expressar suas opiniões nas aulas com medo de serem rudemente corrigidos na frente dos colegas.
    Certo! Não vamos comparar isso com qualquer aula de dança! Estas são muito mais descontraídas e não recebemos uma avaliação final na qual somos aprovados ou não. Mas, de certa forma, sinto isso acontecer. Por exemplo: Ouvimos 500 mil vezes, e treinamos um milhão de vezes, os “flaps” – que não devem ser feitos com a força do pé, e sim usando a musculatura da coxa, segundo Marquinha e ...o pé solto e levantar a perna e.... Bom, aí: vou usar um “flap” na improvisação? Eu não!!!! Sabe lá se ele vai sair certo? (Só pra não perder a mania de implicar com o Leo, isso porque meu ascendente é... não lembro qual) Por outro lado, também se não for o papel do professor corrigir e ensinar, não faríamos aula, né? Afinal das contas somos adultos capazes de superar pequenos entraves psicológicos. Só que alguns têm entraves maiores do que os outros, e aí a capacidade do professor lidar com isso e tentar desenvolver técnicas que auxiliem a pessoa a dançar “para si” e se aperfeiçoar “para si” são importantes. Mas, estamos juntos nessa, né? Alunos e professores buscando a “arte de improvisar” – desafio para 2014!

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  3. O "anonimo" sou eu, tá? A simone -hehe

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  4. Bah, Simone, que máximo o teu comentário!!! Ando sentindo uma necessidade muito grande de discutir esse assunto, de ter um feedback honesto por parte dos alunos e, com isso, afinar meus procedimentos pra que eles sejam prazerosos, um momento bom mesmo, porque é pra isso todos nós vamos lá dançar, né?

    Acho tuas considerações sobre as expectativas dos pais extremamente pertinentes, e elas apontam pra algo maior que é a cultura do sucesso... e esse papo é grande!

    Acho também que tua comparação com o professor de biologia é perfeitamente cabível.

    Encontrar os "mecanismos", "dinâmicas" (não sei que palavra usar!) que tornem os momentos de improviso uma coisa descontraída e bacana, eis o grande desafio. No entanto, há também que sempre, e cada vez mais, afinar a sensibilidade para como outro, a intuição do momento e da forma de propôr... e sempre há o indivíduo, né? a decisão de quando e a quê entregar-se é sempre uma decisão individual...e o indivíduo é sempre misterioso e imponderável (UUUUHHH.... arrasei!)

    Valeu,. de verdade, e saiba que estou aberto a sugestões, sempre. Bjão

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    1. tá bom! continuamos nosso papo nas próximas aulas! Abs!

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